As Razões Impuras (ou a Gênese do Preconceito)

O QUE É E O QUE DEVERIA SER
Não há nenhuma relação lógica entre “o que é” e “o que deveria ser”. Não há nenhuma ligação racional entre a realidade objetiva (aquilo que é) e uma proposição (aquilo que deveria ser).
A simples constatação de uma realidade objetiva (“o céu é azul”, por exemplo) não necessariamente nos induz a produzir uma proposição (“o céu deveria ser amarelo”, por exemplo). Somente a constatação de uma “realidade problemática” (“a criminalidade está aumentando”, por exemplo) nos induz a uma proposição (“devemos construir mais cadeias”, por exemplo). Mas, mesmo assim não há como deduzir logicamente uma proposição (seja ela qual for) do fato que a originou.
É desnecessário dizer que a “realidade problemática” já se apresenta como “algo que deve ser modificado” (como algo que pede uma proposição), e o simples fato dela se apresentar como algo “problemático” já mostra seu caráter puramente SUBJETIVO:
- “O céu é azul, então ele deveria ser amarelo”.
- “Você está ficando gordo, então deveria comer mais”.
- “Você está sem dinheiro, então deveria assaltar alguém”.
Ninguém pode me convencer que minhas conclusões acima são ilógicas ou irracionais, pois tais proposições não são baseadas na lógica, no raciocínio, ou na constatação de um fato, são apenas a expressão de um SENTIMENTO: sinto que o céu deveria ter a cor amarela, pois a cor amarela me agrada; sinto que você deveria comer mais, pois acho uma pessoa gorda bonita. Não há nenhuma irracionalidade em achar que o céu deveria ser amarelo, ou que uma pessoa gorda é bonita. As coisas são como são (objetivas), e não há nada de irracional no fato delas serem como são. Querer que as coisas sejam diferentes não é um ato de racionalidade, é antes um sentimento.
Se você assalta outra pessoa induzido pelo fato de não ter dinheiro, não é condenado por ser irracional. Aliás, ninguém é condenado por produzir um ato irracional. Aqueles que criam a lei “roubar é crime” não o fazem fundamentados na idéia de que “roubar é um ato irracional, por isso não deve ser cometido”, mas sim na idéia de que “roubar é um ato de injustiça, de crueldade contra alguém”. A criação de uma lei é instigada por um sentimento, e não por uma conclusão lógica ou racional. As pessoas são condenadas por produzirem atos cruéis: atos que ferem o nosso sentimento (nossos postulados morais) e não a nossa racionalidade. Quando um louco é inocentado após ter cometido um crime, não é inocentado por ser irracional, mas por não estar no controle de seus sentimentos.
Não há nenhuma irracionalidade no ato de matar, por exemplo. Não há justificativa racional para proibir este ato. Matamos animais todos os dias e não somos condenados por isso. A lei não entende como “cruel” a matança de animais, embora muita gente discorde disso.

POSTULADOS MORAIS
A total desvinculação entre “fatos” (a percepção da realidade objetiva) e “valores” (nossos sentimentos em relação a um fato objetivo) já foi amplamente comentada por Hume e Kant. Os dois filósofos notaram que o “mundo dos valores” (a ética, a moral, as leis e tudo aquilo que guia a nossa conduta diante do mundo) não pode ser deduzido da mera observação de fatos objetivos. Não há valores embutidos na realidade objetiva. O “mundo dos valores” nasce do sentimento humano em relação à realidade. E a expressão concreta de nossos sentimentos em relação à realidade se apresenta sob a forma de “postulados morais” (lembre-se que um postulado não precisa de justificativa, não é demonstrável).
Quando produzo um postulado moral, por exemplo, “não matarás”, não estou me apoiando em um raciocínio lógico ou na constatação de um fato, estou me apoiando em um sentimento: reconheço em outra pessoa um ser igual a mim e me simpatizo e me identifico com sua situação. Não quero para ela o que não quero para mim.

SENTIMENTO versus RAZÃO CRÍTICA
Olhando a história podemos perceber que o ser humano é essencialmente um ser “sentimental”: percebe o mundo ao seu redor através de seus sentimentos. Foi o que Lévi-Strauss chamou de “pensamento mítico”: um pensamento organizador da realidade que é movido por sentimentos em relação a essa realidade. O início da civilização humana pode ser descrito como movido puramente pelo pensamento mítico. A criação das leis e da conduta ética e moral não surgiram com o desenvolvimento do pensamento científico (da razão crítica, experimental e especulativa), mas com o surgimento do pensamento mítico. Isto prova que os postulados morais nada têm a ver com o raciocínio crítico ou a lógica, mas sim com o sentimento humano em relação a sua realidade, com sua vontade de modificar esta realidade.
Já o pensamento científico começa a dar seus primeiros passos na Grécia, e parece até hoje em dia não ser uma coisa natural ao ser humano. Mesmo hoje, quando pretensiosamente acreditamos que a racionalidade impera, o pensamento científico é ensinado e aprendido a duras penas nas escolas. O raciocínio, a lógica, a matemática, a mera descrição de fatos parecem ser habilidades que reclamam um esforço supremo. Um mero vacilo e descambamos para infundados julgamentos, preconceitos e superstições.
A história nos mostra que sempre houve uma “resistência moral” à atitude científica. Não é à toa que pensadores como Freud, Marx e Darwin ainda são espinafrados hoje em dia: suas constatações ainda vão de encontro a vários “sentimentos morais” que vigoram no presente. Se a teoria da gravitação de Newton envolvesse alguma controvérsia moral ou política, certamente estaria sendo contestada até hoje.
Sem dúvida, o pensamento científico pode modificar nosso sentimento em relação ao mundo, pode reposicioná-lo, criar novos conceitos, novas visões da realidade. No entanto, é de pouca serventia quando nossas decisões morais estão em jogo. O pensamento científico pode nos ajudar a entender a estrutura da realidade objetiva (aquilo que é), mas não pode nos dizer que postulados criar em relação a essa realidade.

CLASSIFICAÇÃO DE POSTULADOS
Nossa relação “sentimental” com o mundo tanto pode ser guiada por leis morais quanto por aquilo que chamamos de “preconceito”. Tanto o preconceito quanto a lei moral não vêm de nossa constatação da realidade objetiva, mas de nosso sentimento em relação ao mundo.
Na história humana, preconceito e lei moral sempre estiveram emaranhados e indistintos, e a distinção entre um e outro sempre foi e sempre será um ato de julgamento de valores (um sentimento). Uma atitude que no passado poderia ser compreendida como “moralmente correta” hoje pode ser rotulada de “preconceito”.
Postular que “todos os humanos são iguais perante a lei” é expressar um sentimento em relação à espécie humana, é ter vontade, ter intenção, ser movido por um sentimento de como as coisas deveriam ser. Postular que “alguns humanos são superiores a outros perante a lei” é também um sentimento em relação à espécie humana e à sociedade. Nenhum dos dois postulados pode se dizer fundamentado na lógica, no raciocínio ou na constatação de fatos. Querer que a lei seja igualitária para todos ou apenas para alguns não encontra nenhuma justificativa na razão. São apenas expressões de nossos sentimentos. Classificar um postulado de “lei moral” e outro de “preconceito” é também um sentimento.
A própria idéia de “preconceito” surge quando a idéia de IGUALDADE se torna amplamente popular. A idéia de “igualdade de direitos”, que um dia foi criada para garantir a convivência pacífica SOMENTE entre os gregos bem-nascidos, pouco a pouco expande seus limites através da história, até desembocar nos dias de hoje com conceitos de igualdade cada vez mais abrangentes: igualdade de direitos entre as raças, entre os sexos, entre as classes sociais, etc.
No entanto, o conceito de igualdade pode se tornar mais abrangente ou mais restritivo toda vez que embates sociais vêm à tona e se tornam evidentes. A esta “expansão” do conceito de igualdade chamamos de “conquistas morais”, e a este “encolhimento” do conceito de igualdade chamamos de “preconceitos”. Basta notar que toda idéia tida como “conquista moral” tem a particularidade de abarcar mais coisas para dentro de seu “manto igualitário”: a boa nova de Jesus foi considerar os ímpios e os crédulos, os pecadores e não-pecadores iguais perante Deus. Por outro lado, toda idéia tida como preconceituosa tem a particularidade de expelir mais coisas para fora de seu “manto igualitário”. Afinal, o preconceito se caracteriza como a afirmação da superioridade ou inferioridade de alguma coisa (isto é, torna as coisas iníquas). Assim, todo preconceito é visto como algo “injusto”, pois todo ato de justiça ou injustiça é avaliado pela abrangência de sua eqüidade. Enquanto a justiça procura aumentar a extensão de seu manto igualitário, o preconceito faz o caminho inverso, e por isso é visto como “injusto”.

O PRECONCEITO NOSSO DE CADA DIA
Jesus disse: “jogue a primeira pedra aquele que dentre vós não for pecador”. Certamente teria dito: “...aquele que dentre vós não for preconceituoso” (se a idéia de preconceito existisse na sua época). Para Jesus, o reconhecimento de nossas culpas (como eternos pecadores que somos) é o primeiro passo para a nossa absolvição. De maneira análoga, o reconhecimento de nossos preconceitos (como eternos preconceituosos que somos) é o primeiro passo para restringi-los.
A pessoa que se diz “sem preconceitos” é aquela que está mais propensa a praticá-los, pois pretensiosamente acredita que conduz seu julgamento de valores através da lógica e da razão, e por isso seus preconceitos sempre estão encobertos pela neblina da “justificativa factual”. E isto é uma coisa estrambótica, pois as pessoas “sem preconceitos” são as que estão mais propensas a criar “provas factuais” para justificar seus mais ululantes preconceitos.
E não é difícil encontrar alguém que tenha várias “provas factuais” para justificar, por exemplo, que a mulher é mais emotiva do que o homem, e portanto não é aconselhável colocá-la em cargos de direção (pois estes cargos exigem frieza e equilíbrio), ou que elas dirigem mal, pois não existem mulheres competindo na Fórmula 1.
Estas pessoas mal percebem que é possível encontrar “provas factuais” para justificar praticamente qualquer coisa. Posso, por exemplo, “provar” que a raça negra é infinitamente superior à raça branca, simplesmente avaliando a produção musical de nosso século e do século passado ou a performance dos negros nos esportes. Posso também, por exemplo, “provar” que os anões são indivíduos muito mais honestos do que as pessoas de estatura mediana, simplesmente analisando a porcentagem de anões que cumprem pena de prisão. Posso criar uma infinidade de “provas factuais” para justificar praticamente qualquer coisa, pois no ato de separar os fatos que me servem dos fatos que não me servem sou guiado pela minha intenção de julgar (e julgar é uma expressão de sentimentos).
Os preconceitos “sem ibope”, como diria o benemérito Dr. Plausível (veja seu link a direita deste blog), são os mais praticados em nosso dia-a-dia, e são os que mais estão encobertos pela neblina da “justificativa factual”. O preconceito contra a feiura e a burrice (considerar uma pessoa inferior a outra através da avaliação subjetiva de sua beleza ou inteligência) é praticado diariamente. Há um número enorme de preconceitos que nunca chegaram a ser alardeados pela mídia ou sequer percebidos pelas pessoas.
A natureza humana parece estar sempre pronta para imprimir iniqüidade em tudo, e tanto que chega mesmo a ser preconceituosa na própria avaliação de seus preconceitos (fato observado pelo Dr. Plausível). Chega mesmo a qualificar alguns preconceitos como dignos de reprovação e outros não. O preconceito contra os deficientes físicos (5% da população?) é digno de reprovação, mas contra os feios (90% da população?) não é. Por que o preconceito contra as minorias é digno de reprovação e o preconceito contra a maioria não? (fato também observado pelo Dr. Plausível).
Diante destas constatações, sobram-me razões para conclamar: FEIOS E BURROS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!

Um comentário:

Anônimo disse...

¡Olha só!
¡¡O Dr Plausível fez uma contribuição!!
¡¡¡Dias de glória!!!
¡¡¡¡Bebida para todos!!!!