O Furtivo Fomentador de Hecatombes Gaspar de Moura

“Estão iludidos os homens quanto ao conhecimento das coisas visíveis, mais ou menos como Homero, que foi mais sábio que todos os helenos. Pois enganaram-no meninos que matando piolhos lhe disseram: o que vimos e pegamos é o que largamos, e o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco”
(Heráclito de Éfeso – Fragmentos)

Consta nos papéis do Santo Ofício o processo de Gaspar de Moura, cavaleiro professo da ordem de Cristo e autor de Discours Lunaire – livro (execrado pela Igreja) que trazia em seu subtítulo o germe da discórdia que embostearia a Europa por várias décadas: Discours scientifique au sujet de la chute de la lune adressé à mes compatriotes et en particulier à Sa Magesté D. Jean V Roy de Portugal par le chavalier Gaspar de Moura à Lisbonne 1711.
Não devemos passar adiante sem fazer notar que Gaspar de Moura tem sua biografia envolta em mistérios. Com exceção desse pequeno ensaio científico (redigido num francês precário e salpicado de inúteis arabescos lingüísticos – mal característico dos elegantes textos da época) Gaspar não deixou nenhum escrito, nem mesmo um único rastro de sua ruidosa passagem pela vida. O pouco que se sabe de seu caráter é de origem duvidosa. Os que afirmaram tê-lo conhecido provavelmente buscavam notoriedade, e descreveram-no como homem metódico, de vida discreta, hábitos excêntricos e inclinação ao enigmático. Os periódicos ingleses, sem saber onde colher informações, não dissimularam a intenção de forjar uma figura legendária desse obscuro astrônomo português, e é razoável supor que fabricaram laboriosamente as narrativas de suas esquisitices. Relatos fantasiosos surgiram em Londres, Lisboa e Coimbra. Era dito, por exemplo, que morava dentro de um barril, à maneira de Diógenes, ou que vivia nos ermos, em ruínas abandonadas, alimentando-se de gafanhotos e lesmas.
Na verdade, sua existência teria passado de todo despercebida não fora a publicação de seu ensaio no periódico inglês The Guardian. Em dezembro de 1713, caiu nas mãos de Richard Steele uma tradução estropiada do Discours Lunaire para o inglês – Loony Discourse – que anunciava uma descoberta espetacular e aterradora: a Lua está a cair sobre a Terra. O artigo foi inescrupulosamente publicado sem as devidas correções, e logo virou alvo de chacotas nos saraus da corte inglesa.
A má fama de Gaspar de Moura conspurcava a honra lusitana, e as anedotas que chegavam da Inglaterra eriçavam os cabelos dos portugueses. Foi então que, em 1714, uma análise paciente do texto original do Discours Lunaire foi realizada pela Santa Inquisição (que não gostou de nada do que ali encontrou).
O ensaio, que à primeira vista parecia um aranheiro de jargões e raciocínios tortuosos, continha uma idéia bastante simples. Gaspar sugeria que se dois pesos (mesmo extraordinariamente diferentes) fossem lançados da mesma altura, um em queda livre e outro em trajetória horizontal, desconsiderando a influência do ar, atingiriam o solo ao mesmo tempo.
Para quem estivesse familiarizado com os trabalhos de Galileu, a hipótese de Gaspar não trazia nenhuma novidade. No entanto, sua originalidade estava em afirmar que se o peso lançado na horizontal atingisse uma velocidade tal que sua taxa de queda coincidisse com a taxa de afastamento do solo produzido pela curvatura da Terra, ele permaneceria em queda perpétua, assim como a Lua.
Os deputados do Santo Ofício viraram Portugal de cabeça para baixo à procura do autor de tamanho despautério. Durante décadas decretaram prisões, jogaram Mouras ao fogo, arruinaram famílias, empestearam a vida portuguesa com chantagens e intimidações. Porém, o petulante astrônomo não foi encontrado.
Desgraceira maior veio em 1755, quando a Gazeta de Lisboa recebeu um pequeno bilhete no qual o próprio Gaspar de Moura havia sapecado o jamegão. No papel havia um simples poema:

“O pouco que a razão me deu
cabe numa mão fechada.
O pouco coa razão é muito,
o muito sem razão é nada.
A luz da razão não erra,
a soberba da visão nos trae.
A Lua que rodeia a Terra
também sobre a Terra cae”

Por infeliz coincidência, o poema foi publicado na primeira página do periódico na manhã do dia 1 de novembro de 1755 – exato dia em que um terremoto descomunal escangalhou Lisboa de um extremo ao outro. A concomitância dos fatos convenceu os deputados do Santo Ofício de que a doutrina infesta do encapetado espalha-merdas (que acabara de arrotar em versos sua última valentia) teria sido a causa do castigo de Deus manifestado na desgraça que se abateu sobre o povo português.
A captura de Gaspar de Moura tornou-se ponto de honra e, de fato, não demorou muito. Em dezembro daquele ano, a Inquisição deitou as garras num pobre e desgraçado oleiro. Lançaram-lhe uma acusação escabrosa: “tomar parte em tocamentos e ósculos com moçoilas de cujas circunstâncias de qualidade não se sabe”.
Durante suas admoestações na Casa de Tormentos, o infeliz em vão persistiu na mais formal e terminante negativa. Mas, não durou muito até ser tomado por incontinência verbal. Confessou, entre muitos outros pecados, ser o próprio Gaspar de Moura e, de sobejo, ter (sob o influxo do rabudo) instigado a fúria divina contra a população lisboeta. Os deputados do Santo Ofício se deram por satisfeitos e, a 27 de dezembro de 1755, o corpo do oleiro foi consumido em fogo lento num auto-de-fé no Terreiro do Paço em Lisboa.
Um ano após o acontecido, alguns manuscritos do Loony Discourse (porcamente retraduzidos para outras línguas) já haviam chegado aos confins da Europa, e inquisidores nas pequenas vilas dos Países Baixos já alardeavam a captura de 63 Gaspares de Moura confessos. Até hoje não sabemos se o verdadeiro acabou caindo nas garras da Inquisição. Pouco importa. Seu espectro ainda assombraria a Europa por mais algumas décadas, espalhando discórdia e calamidades naqueles tempos tão santos.