Nossa Anã Filosofia
O DUVIDADOR DO PASSADO
Aporrinhado com o oba-oba metafísico da filosofia escolástica que persistia em sua época, Descartes se avexa a pôr ordem na casa e afirma que a filosofia precisa urgentemente de um método claro, simples e sensato como o método matemático que tanto admirava. Para Descartes, a filosofia deveria renovar-se, esquecer tudo o que fora dito antes e partir de princípios bastante simples para chegar aos mais complicados, e incansavelmente “pesar e medir” cada princípio certificando-se de que eram confiáveis: assim como um Galileu que transformava coisas incomensuráveis em mensuráveis.
Então, Descartes chega à conclusão que esse método deveria partir de pelo menos um princípio rigorosamente indubitável. E para chegar a esse princípio, afirma a sua “dúvida total”: devo duvidar de tudo, mesmo da existência de meu próprio corpo e do universo que me cerca. Ninguém pode me garantir categoricamente que o universo diante de meus olhos não seja uma ilusão de cabo a rabo. A “dúvida total” de Descartes não se resumia simplesmente a um ceticismo cego e inconseqüente, era antes um ceticismo “provocado”, um método de refutação que o ajudaria a chegar a uma “evidência verdadeira” (para Descartes, existiam também “pseudo-evidências”).
Para acirrar ainda mais a sua “dúvida total”, Descartes chega mesmo a criar a hipótese do “malin génie” (gênio do mal), um personagem que haveria criado o universo apenas para nos enganar, para dissimular toda a verdade. Esse “malin génie” poderia ter colocado um universo totalmente falso diante de nossos olhos. Qualquer um que tenha lido as “Meditações” de Descartes certamente se perguntou se os roteiristas do filme Matrix também não o fizeram.
Obviamente, a criação do “malin génie” era apenas mais um método de refutação lucubrado por Descartes para pôr à prova seu princípio indubitável, sua evidência verdadeira. Como posso ter certeza de alguma coisa se tudo pode ser falso e ilusório? Com certeza, tenho todas as razões para duvidar de tudo, no entanto, não posso duvidar da existência deste “ser que duvida” que sou eu. Se existe algum fato do qual tenho absoluta certeza é que duvido de tudo: sou um “ser pensante que duvida”. Meu corpo pode ser uma ilusão, mas o ser que nele pensa (que sou eu) tem certeza que existe. E assim, duvidando de tudo e de todos, Descartes chega ao seu princípio indubitável, o célebre “cogito, ergo sum”.
Segundo Descartes, a nossa única certeza irrefutável é que “pensamos, por isso existimos”. E para pôr à prova seu princípio indubitável, Descartes tenta negá-lo (colocar em dúvida a existência de seu próprio ser pensante), mas logo percebe que a negação deste princípio o leva a uma contradição. Isto é, posso afirmar que tudo no universo é verdadeiro ou falso (em nenhum dos casos estaria caindo em contradição), mas não posso duvidar da existência de meu próprio ser pensante sem cair em contradição. Se afirmo que “minha consciência se engana sobre a existência dela mesma”, então estou afirmando que “algo se engana”. Ou melhor, estou afirmando que “existe algo que se engana”. Ou melhor, estou afirmando a existência de minha consciência como “algo que produz a ação de se enganar”. Se minha consciência não existisse, ela não poderia se enganar (produzir uma ação como sujeito). Uma contradição, segundo Descartes. Assim, seu “cogito, ergo sum” não pode ser posto em dúvida, é um princípio irrefutável.
DE GENTE AINDA MAIS DUVIDADORA
Logo, logo, muita gente duvidou da dúvida de Descartes e percebeu a falácia do cogito cartesiano: é necessário pensar para existir, e para pensar é necessário existir.
O cogito cartesiano pode ser entendido como uma proposição que Kant chamou de “analítica”: “dado x, logo x”. Isto é, a proposição analítica é aquela na qual o “conceito do predicado” está incluso no “conceito do sujeito”. Ou melhor, se afirmo que “dado ALGO, logo ALGO EXISTE”, tenho que admitir que a própria essência de um sujeito (ALGO) é existir (um sujeito tem por essência existir). Assim, o predicado (que faz declarações sobre a existência ou não existência desse sujeito) está incluso na própria essência desse sujeito (que é de existir). Desta maneira, a proposição analítica só pode ter duas soluções: ou afirma a essência de alguma coisa (sendo uma proposição vazia), ou nega a essência de alguma coisa (criando uma contradição).
Se sei que a essência de um cavalo é “ser quadrúpede”, e se afirmo que “dado um cavalo, logo um quadrúpede”, então estou produzindo uma proposição vazia: seria o mesmo que dizer “dado um cavalo, logo um cavalo” (o predicado está incluso na essência do sujeito). Negá-la seria uma contradição: “dado um cavalo, logo um não-quadrúpede” (dado um cavalo, logo um não-cavalo).
O cogito cartesiano parece à primeira vista sensato porque ele se serve de uma coisa bizarra chamada “consciência reflexiva”: uma coisa que consegue atestar a existência de si mesma. Isto é, a consciência reflexiva é essencialmente algo AUTO-REFERENCIAL (ela trabalha com “loopings lógicos”). E qualquer coisa auto-referencial só pode fazer duas coisas: afirmar-se a si mesma DE FORMA TAUTOLÓGICA (“existo” – sei que existo porque estou afirmando minha existência, se não existisse não poderia afirmar minha existência), ou negar-se a si mesma DE FORMA CONTRADITÓRIA (“não existo” – se não existisse não poderia afirmar minha inexistência).
Assim, ao contrário do que acreditava Descartes, a consciência reflexiva é algo injustificável, pois só consegue produzir tautologia ou contradição. E a tautologia é um looping lógico sem saída: existo porque estou afirmando que existo, e se estou afirmando que existo é porque existo. Seria o mesmo que afirmar que 10 é igual a 5+5 porque a soma de 5+5 é igual a 10.
A AUTO-REFERÊNCIA COMO CONTRADIÇÃO E PARADOXO
As frases auto-referenciais têm uma característica intrigante: ou são contraditórias ou paradoxais.
Uma afirmação paradoxal é dizer que uma coisa “é” e “não é” ao mesmo tempo, que alguém é velho e jovem ao mesmo tempo, que estou sentado e não estou sentado, que estou mentindo e não estou mentindo. Um exemplo clássico de paradoxo é o “Paradoxo dos Gêmeos” que surgiu logo após a publicação da Teoria da Relatividade Restrita. Se o Pedro se move perto da velocidade da luz em relação ao seu irmão Joaquim, qual dos dois envelheceria mais cedo (sendo que o tempo passa mais devagar para objetos que estão em movimento)? Para Joaquim, Pedro é que estaria se movendo. E para Pedro, Joaquim é que estaria se movendo. O paradoxo é que tanto Pedro quanto Joaquim envelheceriam mais cedo do que o outro. No entanto, este problema foi resolvido após a publicação da Teoria da Relatividade Geral que incluía o conceito de aceleração.
Já a contradição acontece quando um dos elementos de meu discurso contradiz uma afirmação anterior: quando afirmo que todos os filmes italianos são bons, mas que alguns não prestam (o elemento “alguns não prestam” está em conflito com “todos são bons”. Se alguns não prestam, então todos não podem ser bons. Um dos elementos tem de ser modificado para que o discurso seja coerente). Da mesma maneira, se afirmo que “dado um cavalo, então um não-cavalo”, então o segundo elemento de minha proposição está em conflito com o primeiro (algo tem de ser modificado para que não haja conflito). No paradoxo apenas um elemento afirma e nega-se a si mesmo ao mesmo tempo. No paradoxo não há como modificar os elementos, pois o paradoxo é insolúvel, mas a contradição pode ser resolvida mudando os elementos que estão em conflito. Assim, a negação do cogito cartesiano é uma contradição e não um paradoxo. Se ela fosse um paradoxo seria insolúvel mesmo na afirmativa ou na negação.
É muito difícil criar um discurso paradoxal em nosso dia-a-dia, mas os discursos contraditórios acontecem com muito mais freqüência do que imaginamos. Como o discurso cotidiano é muito mais movido pelas emoções do que pela razão, é muito fácil nos esquecermos do que havíamos dito antes e entrarmos em contradição.
Vejamos alguns exemplos:
“TODOS OS HUMANOS SEMPRE MENTEM”
proposição verdadeira: TODOS os humanos sempre mentem
Então: eu minto (pois sou humano) que todos os humanos sempre mentem
Então: PELO MENOS UM humano não mente sempre
CONTRADIÇÃO: TODOS mentem (o conjunto todo) x PELO MENOS UM não mente (um elemento desse conjunto está em conflito com o conjunto)
proposição falsa: pelo menos um humano não mente sempre
Então: eu minto (produzo uma frase falsa), e como minha frase é falsa, então pelo menos um humano não mente sempre
CONCLUSÃO: a frase tem de ser falsa para não cair em contradição
Neste exemplo, podemos observar que se considerarmos a proposição como falsa ela é coerente. A contradição está em fazer uma auto-referência ao próprio ato de estar mentido (na própria proposição produzida), mas além da auto-referência à própria mentira também existe uma outra referência a um grupo. Se você faz parte de um grupo de amigos e diz “todas as pessoas desse grupo são mentirosas”, na verdade você está fazendo um elogio ao grupo, pois se você (como um membro do grupo) é mentiroso, então a sua frase é uma mentira, logo pelo menos um membro deste grupo não é mentiroso.
Agora vejamos outro exemplo que elimina a questão do grupo:
“EU ESTOU MENTINDO”
proposição verdadeira: estou mentindo
Então: estou mentindo que estou mentindo = não estou mentindo
PARADOXO: estou mentindo e não estou mentindo ao mesmo tempo.
proposição falsa: não estou mentindo
Então: não estou mentindo que estou mentindo = estou mentindo
PARADOXO: não estou mentindo e estou mentindo ao mesmo tempo.
Neste exemplo, existe apenas uma auto-referência ao ato de estar mentindo (não existe nenhuma outra referência a um grupo). O paradoxo surge mesmo quando a proposição for falsa ou verdadeira. O paradoxo acontece porque somente um elemento está em jogo na proposição: eu. Eu faço referência a mim mesmo através da questão de estar mentindo.
Nestes dois exemplos, podemos observar que não há como resolver um paradoxo, pois não há elementos em conflito, não há como modificá-los (a sua afirmativa e a sua negação nos levam ao mesmo paradoxo). Já a contradição, podemos resolvê-la modificando alguns elementos para torná-la coerente.
O CASO GÖDEL
As frases auto-referenciais são uma pedra no sapato de qualquer lógica. Muitos filósofos chegaram mesmo a cogitar que a “auto-referencialidade” seria apenas uma “ilusão semântica” deste intricado mundo da linguagem humana.
No entanto, na virada do século passado, um matemático alemão (David Hilbert) desafiou outros matemáticos a demonstrarem a coerência de um sistema de axiomas na esperança de sacramentar a matemática como uma ciência verdadeiramente exata e lógica. Para a sua surpresa, um matemático austríaco (Kurt Gödel) respondeu ao seu desafio e demonstrou a incompletude de qualquer sistema utilizando-se puramente da lógica formal. Gödel demonstrou que proposições auto-referenciais existem realmente na lógica formal e na aritmética, provocando a incompletude e a incoerência de qualquer sistema. O que Gödel descobriu, através de uma idéia simples e genial, foi a possibilidade de expressar PARADOXOS em linguagem matemática.
A grosso modo, o “primeiro teorema da incompletude” de Gödel pode ser descrito da seguinte maneira:
Imagine que temos um sistema teórico (uma teoria T) tal que só podemos com T demonstrar asserções verdadeiras (esta é a exigência de Hilbert para a coerência de um sistema). Então, podemos inserir em T a seguinte asserção que chamaremos de A:
“ESTA ASSERÇÃO É INDEMONSTRÁVEL EM T”
Então, podemos tirar as seguintes conclusões:
a) se a asserção A for verdadeira (a teoria T exige apenas asserções verdadeiras), então é indemonstrável em T.
b) se a asserção A não for verdadeira (e portanto demonstrável em T), então não pode ser demonstrável em T (pois T só demonstra asserções verdadeiras, e a asserção A não é verdadeira).
Assim, podemos concluir que a asserção A (mesmo sendo verdadeira ou falsa) é indemonstrável em T (o que caracteriza um PARADOXO). Esta total “indemonstrabilidade” da asserção A em T é o que caracteriza a incompletude da teoria T, pois existe nesta teoria pelo menos uma asserção que (mesmo sendo verdadeira ou falsa) não pode ser demonstrável. Chamamos a teoria T de “incompleta” porque a asserção A só pode ser demonstrável fora de T. É necessário buscar fora da teoria T a demonstração de pelo menos uma de suas asserções.
Parece simples quando colocado em palavras, mas a genialidade de Gödel foi ter expressado tudo isso em linguagem matemática. Além do exemplo acima, Gödel demonstra no seu “segundo teorema da incompletude” (com uma matemática ainda mais complexa) que: “se uma teoria T é consistente, T é incapaz de demonstrar sua própria consistência”.
Ninguém antes de Gödel acreditava que a auto-referência seria uma realidade matemática e lógica, ou que paradoxos realmente existissem na matemática.
CONCLUSÃO INCONCLUDENTE
Disso tudo só podemos tirar uma conclusão: do cogito cartesiano aos teoremas de Gödel só podemos dizer que existem mais mistérios na lógica do que possa imaginar nossa anã filosofia.