Nossa Anã Filosofia

O DUVIDADOR DO PASSADO
Aporrinhado com o oba-oba metafísico da filosofia escolástica que persistia em sua época, Descartes se avexa a pôr ordem na casa e afirma que a filosofia precisa urgentemente de um método claro, simples e sensato como o método matemático que tanto admirava. Para Descartes, a filosofia deveria renovar-se, esquecer tudo o que fora dito antes e partir de princípios bastante simples para chegar aos mais complicados, e incansavelmente “pesar e medir” cada princípio certificando-se de que eram confiáveis: assim como um Galileu que transformava coisas incomensuráveis em mensuráveis.
Então, Descartes chega à conclusão que esse método deveria partir de pelo menos um princípio rigorosamente indubitável. E para chegar a esse princípio, afirma a sua “dúvida total”: devo duvidar de tudo, mesmo da existência de meu próprio corpo e do universo que me cerca. Ninguém pode me garantir categoricamente que o universo diante de meus olhos não seja uma ilusão de cabo a rabo. A “dúvida total” de Descartes não se resumia simplesmente a um ceticismo cego e inconseqüente, era antes um ceticismo “provocado”, um método de refutação que o ajudaria a chegar a uma “evidência verdadeira” (para Descartes, existiam também “pseudo-evidências”).
Para acirrar ainda mais a sua “dúvida total”, Descartes chega mesmo a criar a hipótese do “malin génie” (gênio do mal), um personagem que haveria criado o universo apenas para nos enganar, para dissimular toda a verdade. Esse “malin génie” poderia ter colocado um universo totalmente falso diante de nossos olhos. Qualquer um que tenha lido as “Meditações” de Descartes certamente se perguntou se os roteiristas do filme Matrix também não o fizeram.
Obviamente, a criação do “malin génie” era apenas mais um método de refutação lucubrado por Descartes para pôr à prova seu princípio indubitável, sua evidência verdadeira. Como posso ter certeza de alguma coisa se tudo pode ser falso e ilusório? Com certeza, tenho todas as razões para duvidar de tudo, no entanto, não posso duvidar da existência deste “ser que duvida” que sou eu. Se existe algum fato do qual tenho absoluta certeza é que duvido de tudo: sou um “ser pensante que duvida”. Meu corpo pode ser uma ilusão, mas o ser que nele pensa (que sou eu) tem certeza que existe. E assim, duvidando de tudo e de todos, Descartes chega ao seu princípio indubitável, o célebre “cogito, ergo sum”.
Segundo Descartes, a nossa única certeza irrefutável é que “pensamos, por isso existimos”. E para pôr à prova seu princípio indubitável, Descartes tenta negá-lo (colocar em dúvida a existência de seu próprio ser pensante), mas logo percebe que a negação deste princípio o leva a uma contradição. Isto é, posso afirmar que tudo no universo é verdadeiro ou falso (em nenhum dos casos estaria caindo em contradição), mas não posso duvidar da existência de meu próprio ser pensante sem cair em contradição. Se afirmo que “minha consciência se engana sobre a existência dela mesma”, então estou afirmando que “algo se engana”. Ou melhor, estou afirmando que “existe algo que se engana”. Ou melhor, estou afirmando a existência de minha consciência como “algo que produz a ação de se enganar”. Se minha consciência não existisse, ela não poderia se enganar (produzir uma ação como sujeito). Uma contradição, segundo Descartes. Assim, seu “cogito, ergo sum” não pode ser posto em dúvida, é um princípio irrefutável.

DE GENTE AINDA MAIS DUVIDADORA
Logo, logo, muita gente duvidou da dúvida de Descartes e percebeu a falácia do cogito cartesiano: é necessário pensar para existir, e para pensar é necessário existir.
O cogito cartesiano pode ser entendido como uma proposição que Kant chamou de “analítica”: “dado x, logo x”. Isto é, a proposição analítica é aquela na qual o “conceito do predicado” está incluso no “conceito do sujeito”. Ou melhor, se afirmo que “dado ALGO, logo ALGO EXISTE”, tenho que admitir que a própria essência de um sujeito (ALGO) é existir (um sujeito tem por essência existir). Assim, o predicado (que faz declarações sobre a existência ou não existência desse sujeito) está incluso na própria essência desse sujeito (que é de existir). Desta maneira, a proposição analítica só pode ter duas soluções: ou afirma a essência de alguma coisa (sendo uma proposição vazia), ou nega a essência de alguma coisa (criando uma contradição).
Se sei que a essência de um cavalo é “ser quadrúpede”, e se afirmo que “dado um cavalo, logo um quadrúpede”, então estou produzindo uma proposição vazia: seria o mesmo que dizer “dado um cavalo, logo um cavalo” (o predicado está incluso na essência do sujeito). Negá-la seria uma contradição: “dado um cavalo, logo um não-quadrúpede” (dado um cavalo, logo um não-cavalo).
O cogito cartesiano parece à primeira vista sensato porque ele se serve de uma coisa bizarra chamada “consciência reflexiva”: uma coisa que consegue atestar a existência de si mesma. Isto é, a consciência reflexiva é essencialmente algo AUTO-REFERENCIAL (ela trabalha com “loopings lógicos”). E qualquer coisa auto-referencial só pode fazer duas coisas: afirmar-se a si mesma DE FORMA TAUTOLÓGICA (“existo” – sei que existo porque estou afirmando minha existência, se não existisse não poderia afirmar minha existência), ou negar-se a si mesma DE FORMA CONTRADITÓRIA (“não existo” – se não existisse não poderia afirmar minha inexistência).
Assim, ao contrário do que acreditava Descartes, a consciência reflexiva é algo injustificável, pois só consegue produzir tautologia ou contradição. E a tautologia é um looping lógico sem saída: existo porque estou afirmando que existo, e se estou afirmando que existo é porque existo. Seria o mesmo que afirmar que 10 é igual a 5+5 porque a soma de 5+5 é igual a 10.

A AUTO-REFERÊNCIA COMO CONTRADIÇÃO E PARADOXO
As frases auto-referenciais têm uma característica intrigante: ou são contraditórias ou paradoxais.
Uma afirmação paradoxal é dizer que uma coisa “é” e “não é” ao mesmo tempo, que alguém é velho e jovem ao mesmo tempo, que estou sentado e não estou sentado, que estou mentindo e não estou mentindo. Um exemplo clássico de paradoxo é o “Paradoxo dos Gêmeos” que surgiu logo após a publicação da Teoria da Relatividade Restrita. Se o Pedro se move perto da velocidade da luz em relação ao seu irmão Joaquim, qual dos dois envelheceria mais cedo (sendo que o tempo passa mais devagar para objetos que estão em movimento)? Para Joaquim, Pedro é que estaria se movendo. E para Pedro, Joaquim é que estaria se movendo. O paradoxo é que tanto Pedro quanto Joaquim envelheceriam mais cedo do que o outro. No entanto, este problema foi resolvido após a publicação da Teoria da Relatividade Geral que incluía o conceito de aceleração.
Já a contradição acontece quando um dos elementos de meu discurso contradiz uma afirmação anterior: quando afirmo que todos os filmes italianos são bons, mas que alguns não prestam (o elemento “alguns não prestam” está em conflito com “todos são bons”. Se alguns não prestam, então todos não podem ser bons. Um dos elementos tem de ser modificado para que o discurso seja coerente). Da mesma maneira, se afirmo que “dado um cavalo, então um não-cavalo”, então o segundo elemento de minha proposição está em conflito com o primeiro (algo tem de ser modificado para que não haja conflito). No paradoxo apenas um elemento afirma e nega-se a si mesmo ao mesmo tempo. No paradoxo não há como modificar os elementos, pois o paradoxo é insolúvel, mas a contradição pode ser resolvida mudando os elementos que estão em conflito. Assim, a negação do cogito cartesiano é uma contradição e não um paradoxo. Se ela fosse um paradoxo seria insolúvel mesmo na afirmativa ou na negação.
É muito difícil criar um discurso paradoxal em nosso dia-a-dia, mas os discursos contraditórios acontecem com muito mais freqüência do que imaginamos. Como o discurso cotidiano é muito mais movido pelas emoções do que pela razão, é muito fácil nos esquecermos do que havíamos dito antes e entrarmos em contradição.
Vejamos alguns exemplos:

“TODOS OS HUMANOS SEMPRE MENTEM”
proposição verdadeira: TODOS os humanos sempre mentem
Então: eu minto (pois sou humano) que todos os humanos sempre mentem
Então: PELO MENOS UM humano não mente sempre
CONTRADIÇÃO: TODOS mentem (o conjunto todo) x PELO MENOS UM não mente (um elemento desse conjunto está em conflito com o conjunto)
proposição falsa: pelo menos um humano não mente sempre
Então: eu minto (produzo uma frase falsa), e como minha frase é falsa, então pelo menos um humano não mente sempre
CONCLUSÃO: a frase tem de ser falsa para não cair em contradição

Neste exemplo, podemos observar que se considerarmos a proposição como falsa ela é coerente. A contradição está em fazer uma auto-referência ao próprio ato de estar mentido (na própria proposição produzida), mas além da auto-referência à própria mentira também existe uma outra referência a um grupo. Se você faz parte de um grupo de amigos e diz “todas as pessoas desse grupo são mentirosas”, na verdade você está fazendo um elogio ao grupo, pois se você (como um membro do grupo) é mentiroso, então a sua frase é uma mentira, logo pelo menos um membro deste grupo não é mentiroso.
Agora vejamos outro exemplo que elimina a questão do grupo:

“EU ESTOU MENTINDO”
proposição verdadeira: estou mentindo
Então: estou mentindo que estou mentindo = não estou mentindo
PARADOXO: estou mentindo e não estou mentindo ao mesmo tempo.
proposição falsa: não estou mentindo
Então: não estou mentindo que estou mentindo = estou mentindo
PARADOXO: não estou mentindo e estou mentindo ao mesmo tempo.

Neste exemplo, existe apenas uma auto-referência ao ato de estar mentindo (não existe nenhuma outra referência a um grupo). O paradoxo surge mesmo quando a proposição for falsa ou verdadeira. O paradoxo acontece porque somente um elemento está em jogo na proposição: eu. Eu faço referência a mim mesmo através da questão de estar mentindo.
Nestes dois exemplos, podemos observar que não há como resolver um paradoxo, pois não há elementos em conflito, não há como modificá-los (a sua afirmativa e a sua negação nos levam ao mesmo paradoxo). Já a contradição, podemos resolvê-la modificando alguns elementos para torná-la coerente.

O CASO GÖDEL
As frases auto-referenciais são uma pedra no sapato de qualquer lógica. Muitos filósofos chegaram mesmo a cogitar que a “auto-referencialidade” seria apenas uma “ilusão semântica” deste intricado mundo da linguagem humana.
No entanto, na virada do século passado, um matemático alemão (David Hilbert) desafiou outros matemáticos a demonstrarem a coerência de um sistema de axiomas na esperança de sacramentar a matemática como uma ciência verdadeiramente exata e lógica. Para a sua surpresa, um matemático austríaco (Kurt Gödel) respondeu ao seu desafio e demonstrou a incompletude de qualquer sistema utilizando-se puramente da lógica formal. Gödel demonstrou que proposições auto-referenciais existem realmente na lógica formal e na aritmética, provocando a incompletude e a incoerência de qualquer sistema. O que Gödel descobriu, através de uma idéia simples e genial, foi a possibilidade de expressar PARADOXOS em linguagem matemática.
A grosso modo, o “primeiro teorema da incompletude” de Gödel pode ser descrito da seguinte maneira:
Imagine que temos um sistema teórico (uma teoria T) tal que só podemos com T demonstrar asserções verdadeiras (esta é a exigência de Hilbert para a coerência de um sistema). Então, podemos inserir em T a seguinte asserção que chamaremos de A:
“ESTA ASSERÇÃO É INDEMONSTRÁVEL EM T”
Então, podemos tirar as seguintes conclusões:
a) se a asserção A for verdadeira (a teoria T exige apenas asserções verdadeiras), então é indemonstrável em T.
b) se a asserção A não for verdadeira (e portanto demonstrável em T), então não pode ser demonstrável em T (pois T só demonstra asserções verdadeiras, e a asserção A não é verdadeira).
Assim, podemos concluir que a asserção A (mesmo sendo verdadeira ou falsa) é indemonstrável em T (o que caracteriza um PARADOXO). Esta total “indemonstrabilidade” da asserção A em T é o que caracteriza a incompletude da teoria T, pois existe nesta teoria pelo menos uma asserção que (mesmo sendo verdadeira ou falsa) não pode ser demonstrável. Chamamos a teoria T de “incompleta” porque a asserção A só pode ser demonstrável fora de T. É necessário buscar fora da teoria T a demonstração de pelo menos uma de suas asserções.
Parece simples quando colocado em palavras, mas a genialidade de Gödel foi ter expressado tudo isso em linguagem matemática. Além do exemplo acima, Gödel demonstra no seu “segundo teorema da incompletude” (com uma matemática ainda mais complexa) que: “se uma teoria T é consistente, T é incapaz de demonstrar sua própria consistência”.
Ninguém antes de Gödel acreditava que a auto-referência seria uma realidade matemática e lógica, ou que paradoxos realmente existissem na matemática.

CONCLUSÃO INCONCLUDENTE
Disso tudo só podemos tirar uma conclusão: do cogito cartesiano aos teoremas de Gödel só podemos dizer que existem mais mistérios na lógica do que possa imaginar nossa anã filosofia.

Cristo Hipercubo

Estou muito longe de ser fã de Salvador Dalí. No entanto, pelo menos um de seus quadros pode ser considerado incontestavelmente uma obra genial: “Christus Hypercubus”.
A história toda começa com um imaginoso matemático inglês chamado Charles Howard Hinton que ficou famoso como “o homem que viu a quarta dimensão do espaço”. Hinton era um sujeito obcecado por objetos quadrimensionais e passou toda sua vida tentando criar diferentes métodos para visualizá-los.
Um dia Hinton teve uma idéia bastante original: se existissem seres inteligentes que habitassem um mundo bidimensional, como nós (seres tridimensionais) poderíamos comunicar a idéia de tridimensionalidade a estes seres? Hinton imaginou uma folha de papel (onde habitariam os bidimensionais) e um cubo sobre esta folha. Os bidimensionais apenas veriam um quadrado sobre a folha (o que seria a projeção do cubo sobre ela). Mas, se desmembrássemos o cubo sobre o papel, os bidimensionais veriam seis quadrados formando uma cruz (um quadrado no centro, um quadrado acima, outro a direita, outro a esquerda, e dois abaixo). E assim poderíamos informar aos bidimensionais que os seis quadrados formando uma cruz eram o desmembramento de um cubo em duas dimensões, e lhe pediríamos que fizessem um esforço para reconstruí-lo mentalmente em três dimensões. Obviamente os bidimensionais não conseguiriam visualizar o cubo, mas seu desmembramento sobre o papel seria a única forma de comunicar a trimensionalidade de nosso mundo aos bidimensionais.
Da mesma maneira, Hinton imaginou seres quadrimensionais tentando se comunicar com o nosso mundo tridimensional, e chegou à conclusão de que o desdobramento de um “cubo quadrimensional” (um hipercubo) no nosso mundo seria uma cruz formada de oito cubos (como pode ser visto no quadro de Dalí). Obviamente este hipercubo não pode ser visualizado: é impossível visualizar como estes oito cubos poderiam ser dobrados para formar um hipercubo, da mesma forma como os bidimensionais não conseguiriam visualizar como os seis quadrados poderiam ser dobrados para formar um cubo. No entanto, uma pessoa de um mundo quadrimensional poderia “erguer” os cubos de nosso mundo tridimensional e “dobrá-los” para formar um hipercubo. Nossos olhos testemunhariam um evento espetacular: veríamos os cubos desaparecerem, deixando apenas um único cubo no nosso mundo (a projeção do hipercubo em nosso mundo tridimensional). A mesma coisa aconteceria para os bidimensionais: quando erguêssemos cada ponta do cubo para montá-lo em três dimensões, os bidimensionais veriam os quadrados desaparecerem de seu mundo, deixando apenas um quadrado (que seria a projeção de nosso cubo no papel).
Este conjunto de oito cubos que Hinton concebeu foi amplamente anunciado em todo tipo de revista e até mesmo “utilizado” em sessões espíritas. Muitos afirmavam que, meditando sobre os oito cubos, era possível ter vislumbres da quarta dimensão e portanto do mundo dos espíritos. Alguns até mesmo afirmaram ter conseguido a incrível façanha de visualizar a montagem do hipercubo e assim se comunicar com o mundo dos mortos. Infelizmente, estas pessoas de inigualável poder mental nunca deixaram sequer uma linha descrevendo como esta montagem seria possível.
Mas, o que importa em tudo isso são as fascinantes sugestões simbólicas do quadro de Dalí. Gala (a esposa de Dalí) pode ser vista ao pé da cruz hipercúbica (tomando o lugar da mãe de Cristo nos quadros tradicionais da crucificação, ou talvez de Maria Madalena), e o próprio Cristo é representado através do corpo imaculado (sem chagas) de um homem. O corpo rijo e tenso do Cristo se contorce de dor, mas não esta preso por cravos à cruz hipercúbica (seu corpo flutua dentro dela).
O quadro de Dalí é carregado de significados. Principalmente os possíveis significados das intrigantes sugestões de um extenso jogo de DUALIDADES: o muito claro do primeiro plano (aquilo que se oferece de perto à visão) e o muito escuro do fundo (o mistério que está além da visão); a nudez do Cristo (o mundo da espiritualidade e da inocência) e as vestes excessivas de sua mãe (o mundo do pecado e da vergonha); sua mãe pesadamente plantada no chão (a materialidade) e o Cristo flutuando no espaço (a espiritualidade); a mãe que olha para o Cristo (para o que está perto e claro) e o Cristo que olha para o escuro vazio (para o mistério que está além de nossa visão); a área do céu (onde se encontra o Cristo) bem maior do que a área do chão (onde se encontra sua mãe); a mão flácida de sua mãe (sem expressar sofrimento) e as mãos contorcidas do Cristo (expressando sofrimento); a posição calma e amena de sua mãe e a posição rija do Cristo; o elemento religioso (o Cristo) e o elemento científico (o hipercubo); a cruz plana (um elemento bidimensional) onde Cristo foi crucificado e a cruz de cubos (um elemento tridimensional) onde Cristo se “dobrará” em espírito; o grande (o espiritual) e o pequeno (o mundano), pois o tamanho do corpo do Cristo é duas vezes maior do que o de sua mãe.
Tudo isso sugere claramente a existência de DOIS MUNDOS bastante distintos. E esta existência de dois mundos, de duas dimensões distintas (da quarta e da terceira dimensão, do mundo espiritual e do mundo físico), é fortemente argumentada pela presença do hipercubo como a cruz de Cristo. O hipercubo sugere os “desdobramentos” (as revelações) do mundo espiritual (da quarta dimensão) em nosso mundo físico (da terceira dimensão). O desdobramento da dor espiritual em dor física (a dor física como projeção da dor espiritual em nosso mundo); o Deus, ente do mundo espiritual, da quarta dimensão, que se desdobrou em carne e se fez homem (o Cristo como a projeção de Deus em nosso mundo, como revelação do mundo espiritual em nosso mundo, como tentativa de comunicação entre duas dimensões quase incomunicáveis).
A nossa impossibilidade de visualizar um hipercubo montado na quarta dimensão se apresenta no quadro como a nossa impossibilidade de visualizar o mundo espiritual. O desdobramento do hipercubo em nosso mundo (como oito cubos em forma de cruz) apenas nos enche de perplexidade e nem sequer conseguimos esboçar a menor idéia de como ele seria montado. Da mesma forma, a presença de Cristo em nosso mundo nos enche de perplexidade e nem sequer conseguimos compreender como seria o mundo espiritual do qual ele seria a projeção.
Sem dúvida alguma, este quadro de Dalí é uma das mais belas expressões do mistério que envolve a impossibilidade de comunicação entre dois mundos incompatíveis.
Mas, quem conhece um pouco de Dalí sabe muito bem que por trás daquele bigodinho infame existia um macromaníaco, e não seria de se espantar que ele tivesse o topete de se retratar como “O Próprio”. E aí teríamos mais uma dualidade: a Paixão de Cristo pela humanidade (um relacionamento espiritual) e a paixão entre Dalí e Gala (um relacionamento mundano, sendo Maria Madalena representada por Gala e Cristo por Dalí). Uma pessoa provocadora e sedenta por manchetes estardalhantes, como era Dalí, provavelmente teria pensando nesta última possibilidade.

As Razões Impuras (ou a Gênese do Preconceito)

O QUE É E O QUE DEVERIA SER
Não há nenhuma relação lógica entre “o que é” e “o que deveria ser”. Não há nenhuma ligação racional entre a realidade objetiva (aquilo que é) e uma proposição (aquilo que deveria ser).
A simples constatação de uma realidade objetiva (“o céu é azul”, por exemplo) não necessariamente nos induz a produzir uma proposição (“o céu deveria ser amarelo”, por exemplo). Somente a constatação de uma “realidade problemática” (“a criminalidade está aumentando”, por exemplo) nos induz a uma proposição (“devemos construir mais cadeias”, por exemplo). Mas, mesmo assim não há como deduzir logicamente uma proposição (seja ela qual for) do fato que a originou.
É desnecessário dizer que a “realidade problemática” já se apresenta como “algo que deve ser modificado” (como algo que pede uma proposição), e o simples fato dela se apresentar como algo “problemático” já mostra seu caráter puramente SUBJETIVO:
- “O céu é azul, então ele deveria ser amarelo”.
- “Você está ficando gordo, então deveria comer mais”.
- “Você está sem dinheiro, então deveria assaltar alguém”.
Ninguém pode me convencer que minhas conclusões acima são ilógicas ou irracionais, pois tais proposições não são baseadas na lógica, no raciocínio, ou na constatação de um fato, são apenas a expressão de um SENTIMENTO: sinto que o céu deveria ter a cor amarela, pois a cor amarela me agrada; sinto que você deveria comer mais, pois acho uma pessoa gorda bonita. Não há nenhuma irracionalidade em achar que o céu deveria ser amarelo, ou que uma pessoa gorda é bonita. As coisas são como são (objetivas), e não há nada de irracional no fato delas serem como são. Querer que as coisas sejam diferentes não é um ato de racionalidade, é antes um sentimento.
Se você assalta outra pessoa induzido pelo fato de não ter dinheiro, não é condenado por ser irracional. Aliás, ninguém é condenado por produzir um ato irracional. Aqueles que criam a lei “roubar é crime” não o fazem fundamentados na idéia de que “roubar é um ato irracional, por isso não deve ser cometido”, mas sim na idéia de que “roubar é um ato de injustiça, de crueldade contra alguém”. A criação de uma lei é instigada por um sentimento, e não por uma conclusão lógica ou racional. As pessoas são condenadas por produzirem atos cruéis: atos que ferem o nosso sentimento (nossos postulados morais) e não a nossa racionalidade. Quando um louco é inocentado após ter cometido um crime, não é inocentado por ser irracional, mas por não estar no controle de seus sentimentos.
Não há nenhuma irracionalidade no ato de matar, por exemplo. Não há justificativa racional para proibir este ato. Matamos animais todos os dias e não somos condenados por isso. A lei não entende como “cruel” a matança de animais, embora muita gente discorde disso.

POSTULADOS MORAIS
A total desvinculação entre “fatos” (a percepção da realidade objetiva) e “valores” (nossos sentimentos em relação a um fato objetivo) já foi amplamente comentada por Hume e Kant. Os dois filósofos notaram que o “mundo dos valores” (a ética, a moral, as leis e tudo aquilo que guia a nossa conduta diante do mundo) não pode ser deduzido da mera observação de fatos objetivos. Não há valores embutidos na realidade objetiva. O “mundo dos valores” nasce do sentimento humano em relação à realidade. E a expressão concreta de nossos sentimentos em relação à realidade se apresenta sob a forma de “postulados morais” (lembre-se que um postulado não precisa de justificativa, não é demonstrável).
Quando produzo um postulado moral, por exemplo, “não matarás”, não estou me apoiando em um raciocínio lógico ou na constatação de um fato, estou me apoiando em um sentimento: reconheço em outra pessoa um ser igual a mim e me simpatizo e me identifico com sua situação. Não quero para ela o que não quero para mim.

SENTIMENTO versus RAZÃO CRÍTICA
Olhando a história podemos perceber que o ser humano é essencialmente um ser “sentimental”: percebe o mundo ao seu redor através de seus sentimentos. Foi o que Lévi-Strauss chamou de “pensamento mítico”: um pensamento organizador da realidade que é movido por sentimentos em relação a essa realidade. O início da civilização humana pode ser descrito como movido puramente pelo pensamento mítico. A criação das leis e da conduta ética e moral não surgiram com o desenvolvimento do pensamento científico (da razão crítica, experimental e especulativa), mas com o surgimento do pensamento mítico. Isto prova que os postulados morais nada têm a ver com o raciocínio crítico ou a lógica, mas sim com o sentimento humano em relação a sua realidade, com sua vontade de modificar esta realidade.
Já o pensamento científico começa a dar seus primeiros passos na Grécia, e parece até hoje em dia não ser uma coisa natural ao ser humano. Mesmo hoje, quando pretensiosamente acreditamos que a racionalidade impera, o pensamento científico é ensinado e aprendido a duras penas nas escolas. O raciocínio, a lógica, a matemática, a mera descrição de fatos parecem ser habilidades que reclamam um esforço supremo. Um mero vacilo e descambamos para infundados julgamentos, preconceitos e superstições.
A história nos mostra que sempre houve uma “resistência moral” à atitude científica. Não é à toa que pensadores como Freud, Marx e Darwin ainda são espinafrados hoje em dia: suas constatações ainda vão de encontro a vários “sentimentos morais” que vigoram no presente. Se a teoria da gravitação de Newton envolvesse alguma controvérsia moral ou política, certamente estaria sendo contestada até hoje.
Sem dúvida, o pensamento científico pode modificar nosso sentimento em relação ao mundo, pode reposicioná-lo, criar novos conceitos, novas visões da realidade. No entanto, é de pouca serventia quando nossas decisões morais estão em jogo. O pensamento científico pode nos ajudar a entender a estrutura da realidade objetiva (aquilo que é), mas não pode nos dizer que postulados criar em relação a essa realidade.

CLASSIFICAÇÃO DE POSTULADOS
Nossa relação “sentimental” com o mundo tanto pode ser guiada por leis morais quanto por aquilo que chamamos de “preconceito”. Tanto o preconceito quanto a lei moral não vêm de nossa constatação da realidade objetiva, mas de nosso sentimento em relação ao mundo.
Na história humana, preconceito e lei moral sempre estiveram emaranhados e indistintos, e a distinção entre um e outro sempre foi e sempre será um ato de julgamento de valores (um sentimento). Uma atitude que no passado poderia ser compreendida como “moralmente correta” hoje pode ser rotulada de “preconceito”.
Postular que “todos os humanos são iguais perante a lei” é expressar um sentimento em relação à espécie humana, é ter vontade, ter intenção, ser movido por um sentimento de como as coisas deveriam ser. Postular que “alguns humanos são superiores a outros perante a lei” é também um sentimento em relação à espécie humana e à sociedade. Nenhum dos dois postulados pode se dizer fundamentado na lógica, no raciocínio ou na constatação de fatos. Querer que a lei seja igualitária para todos ou apenas para alguns não encontra nenhuma justificativa na razão. São apenas expressões de nossos sentimentos. Classificar um postulado de “lei moral” e outro de “preconceito” é também um sentimento.
A própria idéia de “preconceito” surge quando a idéia de IGUALDADE se torna amplamente popular. A idéia de “igualdade de direitos”, que um dia foi criada para garantir a convivência pacífica SOMENTE entre os gregos bem-nascidos, pouco a pouco expande seus limites através da história, até desembocar nos dias de hoje com conceitos de igualdade cada vez mais abrangentes: igualdade de direitos entre as raças, entre os sexos, entre as classes sociais, etc.
No entanto, o conceito de igualdade pode se tornar mais abrangente ou mais restritivo toda vez que embates sociais vêm à tona e se tornam evidentes. A esta “expansão” do conceito de igualdade chamamos de “conquistas morais”, e a este “encolhimento” do conceito de igualdade chamamos de “preconceitos”. Basta notar que toda idéia tida como “conquista moral” tem a particularidade de abarcar mais coisas para dentro de seu “manto igualitário”: a boa nova de Jesus foi considerar os ímpios e os crédulos, os pecadores e não-pecadores iguais perante Deus. Por outro lado, toda idéia tida como preconceituosa tem a particularidade de expelir mais coisas para fora de seu “manto igualitário”. Afinal, o preconceito se caracteriza como a afirmação da superioridade ou inferioridade de alguma coisa (isto é, torna as coisas iníquas). Assim, todo preconceito é visto como algo “injusto”, pois todo ato de justiça ou injustiça é avaliado pela abrangência de sua eqüidade. Enquanto a justiça procura aumentar a extensão de seu manto igualitário, o preconceito faz o caminho inverso, e por isso é visto como “injusto”.

O PRECONCEITO NOSSO DE CADA DIA
Jesus disse: “jogue a primeira pedra aquele que dentre vós não for pecador”. Certamente teria dito: “...aquele que dentre vós não for preconceituoso” (se a idéia de preconceito existisse na sua época). Para Jesus, o reconhecimento de nossas culpas (como eternos pecadores que somos) é o primeiro passo para a nossa absolvição. De maneira análoga, o reconhecimento de nossos preconceitos (como eternos preconceituosos que somos) é o primeiro passo para restringi-los.
A pessoa que se diz “sem preconceitos” é aquela que está mais propensa a praticá-los, pois pretensiosamente acredita que conduz seu julgamento de valores através da lógica e da razão, e por isso seus preconceitos sempre estão encobertos pela neblina da “justificativa factual”. E isto é uma coisa estrambótica, pois as pessoas “sem preconceitos” são as que estão mais propensas a criar “provas factuais” para justificar seus mais ululantes preconceitos.
E não é difícil encontrar alguém que tenha várias “provas factuais” para justificar, por exemplo, que a mulher é mais emotiva do que o homem, e portanto não é aconselhável colocá-la em cargos de direção (pois estes cargos exigem frieza e equilíbrio), ou que elas dirigem mal, pois não existem mulheres competindo na Fórmula 1.
Estas pessoas mal percebem que é possível encontrar “provas factuais” para justificar praticamente qualquer coisa. Posso, por exemplo, “provar” que a raça negra é infinitamente superior à raça branca, simplesmente avaliando a produção musical de nosso século e do século passado ou a performance dos negros nos esportes. Posso também, por exemplo, “provar” que os anões são indivíduos muito mais honestos do que as pessoas de estatura mediana, simplesmente analisando a porcentagem de anões que cumprem pena de prisão. Posso criar uma infinidade de “provas factuais” para justificar praticamente qualquer coisa, pois no ato de separar os fatos que me servem dos fatos que não me servem sou guiado pela minha intenção de julgar (e julgar é uma expressão de sentimentos).
Os preconceitos “sem ibope”, como diria o benemérito Dr. Plausível (veja seu link a direita deste blog), são os mais praticados em nosso dia-a-dia, e são os que mais estão encobertos pela neblina da “justificativa factual”. O preconceito contra a feiura e a burrice (considerar uma pessoa inferior a outra através da avaliação subjetiva de sua beleza ou inteligência) é praticado diariamente. Há um número enorme de preconceitos que nunca chegaram a ser alardeados pela mídia ou sequer percebidos pelas pessoas.
A natureza humana parece estar sempre pronta para imprimir iniqüidade em tudo, e tanto que chega mesmo a ser preconceituosa na própria avaliação de seus preconceitos (fato observado pelo Dr. Plausível). Chega mesmo a qualificar alguns preconceitos como dignos de reprovação e outros não. O preconceito contra os deficientes físicos (5% da população?) é digno de reprovação, mas contra os feios (90% da população?) não é. Por que o preconceito contra as minorias é digno de reprovação e o preconceito contra a maioria não? (fato também observado pelo Dr. Plausível).
Diante destas constatações, sobram-me razões para conclamar: FEIOS E BURROS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!

Indagações Inteligentes?

O conceito de inteligência sempre me deixou encafifado. Ainda mais quando vejo pulular testes que se arrogam a capacidade de quantificá-la. O mais interessante de tudo isso é que esses testes dependem da inteligência de uns (dos que produziram os testes) para quantificar a inteligência de outros (dos que se submetem aos testes). Se o método de quantificação da inteligência tem de ser concebido por uma inteligência, então qual inteligência teria a autoridade de julgar a outra? Se um teste se diz capaz de quantificar a inteligência, então teríamos de criar um método para quantificar a “inteligência” deste teste, e outro para quantificar a “inteligência” do método, e assim ad infinitum.
Parece-me no mínimo estranho que a inteligência tenha a capacidade de quantificar sua própria natureza (quantificar-se a si mesma). Como a inteligência pode julgar a qualidade de um ato de inteligência? Se a inteligência se acha menos inteligente quando descobre que erra e mais inteligente quando descobre que acerta, então como pode saber se seus acertos não são erros que ainda não descobriu, ou se seus erros não são acertos que ainda não percebeu? Como a inteligência pode saber que não é inteiramente burra e que sempre cometeu erros que nunca percebeu?
Será que os criadores de testes de inteligência não são suficientemente inteligentes para perceber isto?

O Sentido da Existência


Qualquer sujeito que já refletiu, com a mais desapaixonada boa-fé, sobre sua própria existência e a existência do universo já sentiu um súbito desconforto como se estivesse à beira de um penhasco olhando assombrado para o infinito abismo da lógica. Bertrand Russel definiu esta estupefação como um delírio de dúvidas diante da inconsistência da realidade. Uma realidade que se nos apresenta multifacetada, complexa, misteriosa e muitas vezes obstinadamente incoerente e ilusória.
Apesar de diariamente estarmos envolvidos em nossos projetos de vida e afirmarmos haver sentido e razão em todos os nossos atos, no fundo temos consciência da estonteante absurdidade da existência. Como um ser consciente de sua finitude é capaz de criar tantos sentidos para seus atos diante da irredutível insensatez do próprio ato de existir? Há algum desígnio para a existência ou somos apenas um hiato entre dois absolutos nadas? Como devemos conduzir nossas vidas se não sabemos porque e para que existimos? Toda história humana parece se resumir a um extraordinário esforço em imprimir sentido ao manifesto caos lógico que nos cerca.
Mesmo que aceitemos a existência de um criador, sua criação parece não ser governada pelas regras da mais límpida sensatez. Tudo parece estar envolto em infinita complexidade, contradição e mistério. Todo aquele que vê sentido na criação, é porque ainda não se fez um número suficiente de perguntas, ou ainda não se deu conta da magnitude da complexidade dessas questões.
Dizer que pensar sobre a existência é criar um “cemitério de hipóteses” é no mínimo justo. No entanto, não podemos esquecer que é sobre este cemitério que estão alicerçados todos os nossos atos, todas as nossas leis, toda a nossa sociedade e toda a ciência.
Existem basicamente quatro hipóteses diante da existência:

A HIPÓTESE NIILISTA
A hipótese niilista nos diz que a existência não tem nenhum sentido: não há nenhum projeto para o universo nem para o ser humano. O universo existe porque não há outra maneira, não há como não existir: o Nada não faz sentido, nada pode ter vindo do Nada, assim alguma coisa necessariamente TEM DE EXISTIR. Para o niilismo, o Nada é apenas uma concepção equivocada que só pode ter surgido do intrincado labirinto de contradições da razão humana. Isso parece ser correto, pois é impossível para o pensamento humano conceber ou pensar sobre o Nada. Sempre que imaginamos o Nada, damo-lhe características espaciais (um vazio sem fim) ou características temporais (existe antes ou depois de alguma coisa). Kant nos chamava atenção para o fato de que é impossível para a razão humana conceber qualquer coisa fora do espaço e do tempo: o espaço-tempo faz parte de nossa estrutura mental a priori.
Se adotarmos o niilismo na sua forma mais radical, então podemos dizer que nada faz sentido, nada é absoluto, toda conduta humana é possível, tudo é permitido e nada tem uma razão de ser. Para o niilismo a necessidade humana de encontrar sentido para tudo vem de nossa relação empírica com o mundo: percebemos o mundo através de relações de causa e efeito. Para cada fenômeno observado, observamos uma causa que lhe deu origem, e assim por diante. O sentido que imaginamos haver no mundo observável advém da percepção empírica de que para cada fenômeno deve haver uma causa. Mas, nada nos pode garantir que a relação entre causa e efeito seja realmente uma “característica” do universo. Os niilistas acreditam que essa relação é apenas um “método” adquirido pela nossa razão para entender o mundo: jamais poderemos saber como as coisas realmente são; apenas podemos saber como as coisas se relacionam uma com as outras. A essência de uma coisa é o seu “fenômeno”: seu comportamento em relação a outros fenômenos.
A hipótese niilista, embora sendo a mais sincera de todas (não é possível afirmar categoricamente nenhum sentido para a existência, e jamais saberemos como as coisas realmente são), não é bem vista mesmo nos dias de hoje. Muitos vêem no niilismo uma forma destrutiva de pensar: existência sem sentido é existência sem valores; e existência sem valores é a negação da sociedade humana. O lado “estéril” do niilismo está em não apontar nenhuma razão para a existência humana, e consequentemente, nenhuma razão para a existência de leis, de vida em sociedade, ou conduta moral. O niilismo simplesmente nos mostra que o ato de existir é uma gigantesca insensatez: um beco sem saída para a razão humana.

A HIPÓTESE EXISTENCIALISTA
A hipótese existencialista é um “niilismo moderado”. Não há um projeto para o universo e nem para o ser humano. A existência não tem sentido. Mas, a consciência humana é inevitavelmente livre, e essa inevitável liberdade cria inevitavelmente um sentido para o mundo.
A hipótese existencialista parte de uma longa meditação sobre a natureza da consciência humana (e quem quiser conhecê-la em detalhes basta ler “O Ser e o Nada” de Sartre). A muito grosso modo, a consciência emana de uma coisa (nosso cérebro), mas não é essa coisa (não é o próprio cérebro nem está em nenhuma de suas partes), por isso não é substância (não existe como coisa). A consciência é a manifestação da estrutura cerebral, por isso não está em parte alguma do cérebro. Fazendo uma analogia, a consciência é assim como o nosso conceito de “força”. Força é tudo que produz o movimento de um corpo, mas não podemos dizer que ela existe como coisa, não podemos separá-la de um fenômeno físico e dizer “aqui está a força”. A força é a manifestação da estrutura de um fenômeno. Da mesma forma, não podemos separar a consciência dos fenômenos cerebrais e dizer “aqui está a consciência humana”.
Para os existencialistas, a consciência é “nada” (não existe como coisa, como substância). O que a consciência faz é simplesmente perceber, e quando percebe-se a si mesma torna-se “consciência reflexiva” (o famoso cogito cartesiano). A reflexão da consciência sobre as coisas do mundo e sobre si mesma é completamente livre: ela cria os sentidos que bem entender para o mundo e para si mesma. A essência da consciência humana é ser livre. E desta inevitável liberdade da consciência em criar sentidos para tudo, os existencialistas postulam uma saída: a existência terá qualquer sentido que dermos para ela. Se a consciência é um dínamo criador de sentido (está condenada à liberdade de criar sentidos), então A EXISTÊNCIA TEM NECESSARIAMENTE DE TER UM SENTIDO (o sentido que dermos para ela).
Sem dúvida, a hipótese existencialista é mais agradável do que a niilista: estamos condenados à liberdade, à inevitável liberdade de dar sentido para a existência. E a palavra “condenado” tem de ser entendida em seu sentido literal: não há como evitar a liberdade, não há como não dar sentido à existência.

A HIPÓTESE MÍTICA-RELIGIOSA
A solução mítica ou religiosa para a existência não é tão absurda quanto alguns agnósticos crêem ser. A crença em um mundo supra-real resolve de uma tacada só muitas questões cabeludas sobre a existência: dá sentido à vida, à sociedade humana e aos códigos morais. Segundo Lévi-Strauss, o pensamento mítico-religioso não apresenta nenhuma oposição ao pensamento científico, nem vice-versa: os dois tipos de “entendimento do mundo” podem conviver juntos em perfeita harmonia. O confronto só acontece quando questões de poder estão em jogo: quando, por exemplo, uma instituição religiosa vê seu poder como instituição ameaçado por idéias científicas, ou vice-versa.
Outro tipo de confronto acontece quando tentamos racionalizar, ou interpretar, a crença mítica-religiosa com o intuito de adequá-la às nossas “atitudes mundanas”. Basta ler os Evangelhos com atenção para perceber que a concepção de Jesus da existência é “barra pesada”: “o servo é superior ao seu mestre”; “é mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um rico entrar no paraíso”; “se quiser me seguir, largue tudo e me siga”. Não é fácil adaptar estas máximas cristalinas (que não deixam lugar para interpretações) às nossas atitudes cotidianas. A neurose do cristão (as suas insolúveis contradições internas) está em tentar resolver racionalmente suas contradições. Tentar resolvê-las seria o mesmo que considerar Jesus um cínico. E Jesus pode ter sido tudo menos um cínico: preferiu morrer a ter que mudar uma vírgula daquilo que acreditava.
A infecunda e neurótica interpretação do pensamento “radical” de Jesus é o que causa as aberrações religiosas tão comuns hoje em dia. No entanto, a concepção religiosa em si nada tem de contraditório ou aberrante. Como dizia Lévis-Strauss, é simplesmente uma “outra forma de raciocínio” que tenta dar sentido a existência.

A HIPÓTESE CIENTÍFICA
A atitude científica é a de deixar o sentido da existência “em suspenso” por falta de dados. A hipótese científica não nos diz se há ou não um sentido para a existência. A ciência simplesmente atém-se ao estudo da estrutura da matéria (o universo como fenômeno) na esperança de um dia descobrir mais uma pequena peça do gigantesco quebra-cabeça cósmico.
É tolice das grandes achar que a ciência não se ocupa de questões existenciais ou ontológicas. Abra qualquer livro sério sobre cosmologia ou física de partículas, e você terá a impressão de que foi escrito por um filósofo escolástico. Existe na hipótese científica, assim como na hipótese mítica-religiosa, uma busca de unificação, uma procura por uma manifestação única do universo, uma lei básica que tudo governa. Para muitos cientistas sérios (e Einstein pode ser incluído neste grupo), o universo se manifesta como uma entidade una cujas leis ainda nos atordoam, mas que um dia poderão ser descobertas e apreciadas em sua totalidade: através do conhecimento físico do universo poderemos um dia finalmente olhar a “face de Deus”. Um Deus que talvez não seja nada do que hoje se imagine ser. Não é a toa que muitos destes cientistas se digam “espinosistas”. Espinosa talvez tenha sido o filósofo metafísico que mais sucesso teve em conciliar uma visão materialista da natureza com uma hipótese metafísica da existência divina. Espinosa constrói sua metafísica partindo de uma idéia bastante simples: se a principal característica de Deus é ser absoluto e infinito (note o uso da condição “se”), então TUDO DEVE SER DEUS. Se Deus fosse um ser supra-real (separado de sua própria criação), então haveria um “lugar” onde Deus não estaria, assim Deus não seria absoluto. A condição para que haja um Deus absoluto é a de que Ele SEJA tudo (note o uso da palavra “ser” ao invés de “estar”). Para Espinosa, Deus não pode ESTAR em tudo (como é o princípio normalmente professado por religiosos), mas deve necessariamente SER tudo.
A concepção espinosita da existência divina é muito simpática à concepção cientificista do universo: o conhecimento físico do universo pode nos revelar Deus, pois seria Ele que estaríamos “estudando”.

CONCLUSÃO INCONCLUDENTE
O que é então a existência? Uma absurdidade sem sentido e sem propósito? Uma absurdidade com qualquer sentido e propósito que desejarmos? Uma gigantesca insensatez sobre a qual construímos a frágil sensatez da sociedade humana? Uma incógnita em suspenso? Uma eterna busca de sentido? Um mistério divino? Um jogo de esconde-esconde entre Deus e a humanidade?
Mesmo que você não tenha como responder estas perguntas, certamente conduz sua vida apoiado em alguma hipótese. Mesmo o indivíduo mais autômato carrega dentro de si uma hipótese reconfortante ou um pavor indizível diante do absurdo ato de existir.

Poeminha do Malaquias

Penso porque quem pensa existe,
já dizia o sábio Descartes.
Não sou Hegel nem sou Nietzsche,
sou Malaquias Malazartes.