A Máquina do Apocalipse

Jamais on ne fait le mal si pleinement et si gaiement que quand on le fait par conviction religieuse

(Blaise Pascal em “Pensées”, parte II, artigo 17)


"With or without religion, you would have good people doing good things and evil people doing evil things. But for good people to do evil things, that takes religion"

(Steven Weinberg, citado no The New York Times, 20 de Abril, 1999)


O princípio de Tânatos (ou pulsão de morte), elaborado por Sigmund Freud em seu artigo “Jenseits des Lustprinzips” (Além do Princípio de Prazer) de 1920, define-se como o instinto biológico que compele todo organismo vivo a retornar a seu estado inorgânico, ao estado primordial de toda matéria. Em oposição a Eros (instinto de prazer, autopreservação e reprodução) que trabalha em favor da vida e sua propagação, Tânatos serve à autodestruição, à dissolução e à desordem. Entendido como um mecanismo biológico que aciona a desagregação molecular (mecanismo já presente na mais primitiva célula de priscas eras), Tânatos hoje se manifesta em nosso psiquismo como uma entidade nefasta que nos instiga à destruição. É ele que nos induz à agressividade gratuita, a pequenos e grandes atos de vandalismo, à imprudência e a todo tipo de conduta que envolva perigo desnecessário. Ainda que nosso senso crítico resista a aceitar este dualismo aparentemente fácil e artificial (nascido da mente de um psicanalista), não podemos negar que o princípio de Tânatos denuncia um dos traços mais marcantes de nossa natureza (tão marcante que já é truísmo dizê-lo): nossa irrefreável disposição para destruir indiscriminadamente.

Uma explicação mais sensata e criteriosa deste fenômeno vem do zoólogo evolucionista Richard Dawkins, para quem a natureza é governada por um impulso cego. Um impulso que não sabe distinguir o criar do destruir, o malefício do benefício, o bem do mal. Mesmo um comportamento autodestrutivo (que a longo prazo culmine no extermínio da espécie) surge de aquisições evolutivas destinadas a manter a vida a curto prazo. Deste modo, a engenhosidade do cérebro humano (que um dia nas savanas da África serviu para nos proteger de predadores e promover o conforto e a longevidade da espécie) pode hoje reduzir o planeta a um esferóide enfumaçado e sem vida.

A história que agora passo a contar ilustra este aspecto sombrio de nossa natureza. É a história dos kalananas: cultores da destruição e arautos do fim dos tempos. Seita cujos sonhos um dia corporificaram-se num engenho destinado a aniquilar toda existência. Engenho que – muitos crêem – ainda subsiste na escuridão dalgum templo hinduísta. Seria inexato começá-la sem uma breve menção à teogonia védica. Destarte, transcrevo abaixo um trecho da décima quarta narrativa dos Mahapuranas:

“Antes de haver o tempo e a extensão finita das coisas, o deus Vixnu dormia absoluto e acrônico nas profundezas da água primordial. Num certo momento (que poderia ter sido qualquer um e todos) a serpente do infinito o leva à superfície da água. Como tudo que há é tão-somente Ele, e como tudo que pensa é tudo que pode ser pensado, Vixnu sai de seu sono místico para abismar-se em reflexões sobre o mundo que irá criar. De seu umbigo emerge a flor de lótus, e dela surge Brahma – o demiurgo. Brahma se põe a sonhar e um universo de finitudes se cria.”

Deste mundo de finitudes e imperfeições (no qual se arrasta nossa miserável existência) nasce Xiva, terceiro deus do trimúrti, origem da corrução e extermínio dos seres. O pai da inelutável desordem universal. O deus destrutor que, na iconografia popular, se apresenta ornado de um colar de crânios e acompanhado de serpentes, fantasmas e vetalas – espécie de vampiro que se apodera dos cadáveres (que, por descuido ou impiedade, não foram cremados) e devora suas entranhas.

Das tantas personificações de Xiva (que aqui não cabe enumerar) foi esta imagem sombria, cujos detalhes bastam para nos infundir terror, que despertou o interesse da obscura seita dos kalananas, a seita dos “pés-de-poeira” – assim alcunhados pela penúria em que viviam seus adeptos. Os kalananas foram por mais de oito séculos um sorvedouro de almas amotinadas, de homens desfavorecidos e sem préstimo, de gente sem pátria, de linhagem espúria, desnorteada e insatisfeita com a direção que o mundo havia tomado. Esta confluência de renegados (talvez única na história humana) remonta a meados do século X, e diz a tradição que os feitos e pregações do asceta Allata foram a razão deste extremado culto à destrutividade de Xiva.

Inscrições encontradas no norte da Índia relatam a vida deste conturbado místico que, ao contrário dos grandes vultos da história do espírito humano, não mostrou na juventude nenhuma propensão à religiosidade. A insipidez de sua vida pregressa (copiosamente descrita por historiadores do hinduísmo) denota um jovem de personalidade hedonista e apática, de temperamento esmorecido, nu de virtudes e entusiasmo, cultor de um laisser-aller do corpo e do espírito. Porém, ao completar a maioridade, uma eventual peregrinação a Gaya (lugar sagrado do vixnuísmo) opera em Allata uma extraordinária conversão. Allata volta a sua cidade natal e renuncia a todo tipo de atividade profana. É nesse período que sua destrutividade, até então latente, se manifesta. Diz a história que, certa vez, num arroubo de desapego aos bens mundanos, Allata utilizou toda sua herança para libertar um homem ameaçado de prisão por dívidas (que, por um acaso, devia a sua própria família). Seu gesto de generosidade terminou por levar seus familiares à ruína e à indigência. E foi assim que, em pouco tempo, a destrutividade de suas ações ganhou fama e atraiu chusmas de seguidores pelo norte da Índia. Seguidores que viam em Allata o avatar de Xiva.

Pelo que se sabe, Allata e seus discípulos percorreram as cidades do norte apregoando o xivaísmo e a destruição. Em meio a pregações e rituais, queimaram os povoados pelos quais passaram, arruinaram plantações, profanaram templos e trucidaram – com uma barbárie sem precedentes – tudo que se movia por terra. Quando se deram conta da enormidade do mundo e da pequenez de suas matanças, decidiram assentar-se em Benares e erigir um templo à margem do Ganges. Nele construíram a Torre de Brahma, cujo fim era aniquilar a criação de um só golpe, sem as penosas lutas e as infindáveis efusões de sangue.

No mundo ocidental, a primeira menção à torre aparece na França em 1883, ano em que o matemático Éduard Lucas cria "La Tour de Hanoi" – quebra-cabeça vendido em lojas de magia como um enigma místico vindo dum oriente exótico e distante. A caixa do quebra-cabeça (inundada de caracteres chineses e árabes – que poucos na França saberiam distinguir) continha uma réplica da torre em tamanho reduzido. Na folha de instruções, lia-se o relato de sua visita ao templo dos kalananas:

“No piso do templo, abaixo do domo que (segundo os membros da seita) marca o centro do mundo, existe uma placa de madeira cravada por três hastes. Na haste central, sessenta e quatro discos (de diâmetros diferentes e transfixados) formam um cone eqüilátero de um metro de altura: é a Torre de Brahma. Dia e noite, seguidores da seita transferem os discos de uma haste para outra seguindo uma antiga lei (cuja origem se perde na noite dos tempos): mover um disco de cada vez sem jamais colocar um grande encima de um pequeno. Acreditam que no exato momento que os sessenta e quatro discos forem transferidos para outra haste, a torre desabará, Brahma será despertado e o universo se extinguirá num breve sopro, como a débil chama de uma vela sujeita à ação da tempestade”.

Diz a história que Éduard Lucas passou noites em claro, intrigado com a complexidade matemática da torre, à procura de uma fórmula que lhe desse o menor número de movimentos para se transferir os sessenta e quatro discos para outra haste. Efetuou cálculos, analisou ciclicamente cada detalhe do problema e, ao cabo de duas semanas, seus cômputos deram numa cifra extraordinária: 18.446.744.073.709.551.615 movimentos. Um número espetacular. Ainda mais espetacular era a conseqüência prática de tal número: se um disco fosse movido a cada segundo ininterruptamente, a tarefa seria completada em 600 bilhões de anos.

Dizem que Éduard Lucas voltou ao templo para convencer os kalananas da inutilidade da torre como agente do apocalipse. Porém, suas ponderações não foram suficientes para demovê-los do maligno intento de desfazer a criação.

Embora a seita já não mais exista – e a torre hoje se resuma a uma mera curiosidade matemática, muitos ainda crêem que (no exato momento que escrevo estas linhas) nalgum escuro porão de um templo hinduísta, solitários cultores de Xiva continuam a mover os pesados discos, certos de que abreviam a cada segundo este esplêndido, inefável, inescrutável, incomensurável e anfigúrico sonho de Brahma.

Um comentário:

Arthur Golgo Lucas disse...

Ficou UMA dúvida: por que 64 discos?