O Sono de Chestov

Numa tarde do mês de julho de 1930, o francês Léon Chestov foi visto por Deus (que tudo vê e ajuíza) escrevendo algumas rápidas linhas – fruto de suas longas reflexões sobre os atributos divinos:
"Il y a une seule chose qui est refuseé à Dieu lui-même, c’est de modifier ce qui a eu lieu. L’impossibilité d’abolir le passé semble absolue, car la science du possible précède la science du réel." (Há uma só ação que é vedada mesmo a Deus: modificar o que já se passou. A impossibilidade de abolir o passado parece absoluta, pois a ciência do possível precede a ciência do real).
Com estas palavras havia concluído o segundo capítulo de sua teodicéia "Athènes et Jérusalem". Feliz com o resultado de seu trabalho, recostou-se na poltrona e dormiu por algumas horas.
Durante o sono, Deus (que é livre de motivos e leis para agir) mudou seu passado. Fê-lo nascer em 1866, na cidade de Kiev, com o nome de Lev Isaakovish Shestov. Para que isto acontecesse, Deus alterou a estrutura íntima do universo em seu nascedouro – num átimo após o fiat lux. Como tudo que há está ligado a uma construção lógica e infinitamente precisa, uma nova existência, ligeiramente distinta da anterior, se fez. Planetas e galáxias tomaram trajetórias diferentes, e a vida sobre a Terra surgiu num outro charco primordial. Na história humana, um certo homem nasceu – homem que jamais teria nascido noutra configuração do universo. Sua prole, através da poeira dos milênios, ramificou-se em famílias e etnias distantes, e na Rússia do século XIX, um casal apaixonado (sem suspeitar a ascendência que os unia) teve um único filho (Lev Isaakovish Shestov) cuja vida seguiu o curso determinado pelo universo em seu nascedouro.
Tudo isto aconteceu em um espaço ínfimo de tempo, tão ínfimo que podemos dizer que não aconteceu.
Shestov acordou em sua poltrona e sentiu que, durante o sono, havia recebido e perdido algo extraordinário. Impelido por esta sensação inominada, voltou-se para a escrivaninha e concluiu o segundo capítulo de sua teodicéia – fruto de suas longas reflexões sobre os atributos divinos:
"Le principe logique de non-contradiction ne s’applique pas à Dieu. Dieu peut même faire que ce qui a été n’ait pas été". (O princípio lógico da não-contradição não se aplica a Deus. Deus pode até mesmo transformar o que foi no que não foi).
Feliz com o resultado de seu trabalho, saiu à rua e retomou seu lugar na trama da existência.

2 comentários:

Mauro Castro disse...

Esta teodicéia explica muita coisa...
Há braços!!

Anônimo disse...

Que bom que vc voltou! Mas, pelo número pequeno de comentários, acho que seus leitores ficaram cansados de esperar...