Anus Mundi
LITIGARE CUM VENTIS
"Um país é feito de homens e livros" – nos anos 70, esta frase de Monteiro Lobato foi utilizada de forma grandiloqüente nas propagandas "educativas" do governo militar. A pretexto de estimular o hábito de leitura do brasileiro, a tv era canhoneada com essas propagandas cívicas a cada intervalo. O objetivo escuso desse súbito e exaltado interesse dos militares pela cultura livresca era dissimular a conhecida paúra que tinham dos livros. Tal qual misósofos vestidos com a pele de educadores, os militares apresentavam a leitura como um nobre e solene dever cívico. Não deu certo. As propagandas só acentuaram ainda mais a relação apática que o brasileiro tem com a leitura.
Anos atrás, a Rede Globo (há muito acusada de ser o dejetório fedorento da cultura) convidou celebridades de notória ignorância para promover a leitura e, por tabela, melhorar sua imagem diante de seus detratores. Jogadores de futebol, atores de novela, modelos, cantores, socialites e marqueteiros apresentaram seus livros de cabeceira como um xarope amargo – mas necessário – que se toma antes de dormir e que deve servir para alguma coisa. Também não deu certo.
TIMEO HOMINEM UNIUS LIBRI
O brasileiro compra em média 1,8 livros por ano. Desta média, 67% são livros didáticos (esses que se compra a contragosto, a mando da escola). De livros não-didáticos, a média é praticamente meio livro por ano (uma média que tem se mantido estável por mais de vinte anos). Ou melhor, o brasileiro lê em média um livro a cada dois anos.
Na Colômbia (país que o brasileiro comum considera pobre e atrasado), a média anual de livros não-didáticos por habitante é 2,4 (quase 5 vezes mais que a do Brasil). Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a média anual é 5, e na França 7. Enquanto o brasileiro lê um livro a cada dois anos, o europeu lê um livro a cada dois meses. Deste modo, se um brasileiro adquire o hábito de leitura, vamos dizer, aos 15 anos e morre aos 65, ele leu 25 livros durante toda a sua vida. 25 livros é o que um europeu lê em pouco mais de 4 anos. Ou seja, o que um europeu lê durante o final de sua adolescência (dos 15 aos 18 anos) corresponde ao que um brasileiro lê durante toda sua vida.
Num país onde apenas 23% da população tem emprego com carteira assinada e onde 80% mal consegue subsistir dignamente (estou falando do Brasil!!!), é tolice esperar que essa nação de pobres inclua um livro em sua minguada cesta básica. No entanto, uma pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (realizada em 2003) mostra que, na divisão de gastos da classe média, o livro fica atrás das despesas médias com cigarro, perfume, cabeleireiro e manicure. E a mesma pesquisa revela que famílias com maior poder aquisitivo consomem 4 a 6 vezes mais esses produtos do que livros.
ABYSSUS ABYSSUM INVOCAT
Uma pesquisa conduzida pela UNESCO em 2000, com a gurizada de 15 anos (das escolas públicas e particulares), revelou que a maioria dos alunos brasileiros (tanto das escolas públicas quanto das particulares) não entende patavina do que lê, é capaz apenas de realizar tarefas simples (como localizar informações específicas num texto), confunde sua opinião com a opinião do autor e tem dificuldades em relacionar o conteúdo lido à realidade. Não é à toa que hoje já consta no currículo de muitas escolas particulares uma matéria nova, com professores especificamente treinados para ministrá-las: compreensão de texto. A simples compreensão do que se lê (que deveria vir naturalmente através do hábito aprazível da leitura) é hoje ensinado como "ciência independente" (a ciência de aguçar a intuição, lapidar o chute, e assim ter algum sucesso em questões de múltipla escolha que "caem" no vestibular).
Esse estapafurdismo educacional acontece porque ensinar compreensão de texto a não-leitores é como ensinar uma tartaruga a andar na corda bamba. O que o educador brasileiro faz é amarrar o bichinho a uma roldana, deixar a roldana deslizar pela corda e dizer: "olha! Quem disse que tartarugas não andam na corda bamba?".
SUNT PUERI PUERI, PUERILIA TRACTANT
Não é surpresa que a educação brasileira seja infantilizada e infantilizante. O método educacional utilizado no curso primário inexplicavelmente se repete no secundário e na universidade: o professor passa a matéria na lousa, os alunos copiam da lousa, o professor explica o que escreveu, e depois a alunada toda tenta decorar tudo aquilo antes da prova. E a coisa mais espiclondrífica de tudo isso é que o conteúdo do livro adotado pelo professor (livro que os alunos têm de comprar) é transcrito para a lousa e retranscrito para o caderno dos alunos, e o tempo que se perde para produzir essas duas cópias é chamado de "aula".
Incapazes de aprender pela leitura (pois a escola e a família não os preparam para isso), os alunos brasileiros são uns eternos "dependentes escolares" – acreditam que somente um curso universitário pode lhes outorgar conhecimento. Só proceis vê como as coisa tão: dias atrás, deixei um sujeito boquiaberto quando citei alguns detalhes da vida de Isaac Newton. Ele ficou pasmado quando soube que eu nunca tinha "feito curso de História".
MUNDUS VULT DECIPI
O valor simbólico que a cultura brasileira atribui ao livro e à educação é de caráter esquizofrênico. Por um lado, fala-se muito em "melhoria da educação", "revolução educacional", "necessidade da leitura". Por outro lado, o que o brasileiro menos quer é educar-se. Se, ao invés de carros e eletrodomésticos, os programas de tv dessem como prêmio um vale-livro no valor de 10 mil reais – para o sujeito inaugurar uma pequena biblioteca em casa, ou uma bolsa de estudo numa universidade SÉRIA, o sujeito contemplado cuspiria na cara do apresentador.
Quando o brasileiro diz "quero uma educação melhor", na verdade, está dizendo "quero um diplominha universitário fácil, que não me dê muito trabalho para conseguir, e que me possibilite arranjar um emprego melhor". Educação séria (prá valê mesmo!!!) envolve um nível de empenho, interesse e vocação acadêmica que poucos estariam dispostos a encarar.
STULTORUM INFINITUS EST NUMERUS
É curioso que, num país de não-leitores, exista uma preocupação obsessiva com o "português bem falado e escrito". Nunca houve tanta gente alarmada com os descaminhos da língua portuguesa como há hoje. A mera inobservância de regrinhas gramaticais tolas (como dizer "duzentas gramas" ao invés de "duzentos gramas") é considerada falta imperdoável, suficiente para estigmatizar qualquer falante ou escrevedor da língua.
Esse "policiamento lingüístico" (promovido por gente imperita e revistas palpiteiras) é hoje uma forma de preconceito velado do cidadão de classe média (que não se sente à vontade para espezinhar abertamente o pobre, o negro e o nordestino – que, afinal de contas, não falam um português nem melhor nem pior do que ele).
VOX CLAMANTIS IN DESERTO
Einstein e Aristóteles, embora separados por um abismo secular e cultural, tinham uma opinião em comum: ambos acreditavam que somente a busca de conhecimento motivada pela curiosidade, pela pura vontade de conhecer o mundo ao seu redor (sem ter qualquer outro objetivo em mente), redundaria em verdadeiro progresso humano.
Frank Zappa, que também pensava da mesma forma – mas que não dourava a pílula em suas declarações, escreveu num de seus álbuns: "drop out of school before your mind rots from exposure to our mediocre education system. Go to the library and educate yourself if you’ve got any guts".