Enquanto Lépidos Pardais Algazarravam aos Pulos Anunciando uma Alvissareira Manhã...
“O bom escravo é o pior senhor” (provérbio popular)
Dias atrás, enquanto lépidos pardais algazarravam aos pulos anunciando uma alvissareira manhã, recebi o telefonema de uma vendedora que me oferecia a assinatura de um jornal famoso e indispensável. Como não costumo esbaldir meus proventos com jornais famosos e indispensáveis, declararei com firmeza (por três vezes!, e sem ser ouvido!) que não estava interessado no negócio. A leve exasperação em minha voz deve ter reavivado sentimentos de desagravos há muito represados na alma daquela moça. E dali em diante, o que parecia ser um simples contato de telemarketing transformou-se num achincalhamento gratuito.
A primeira leva de malevolências veio na forma de um chorrilho de perguntas ríspidas e cavilosas: “qual o seu grau de escolaridade?; domina algum idioma?; quantos livros lê por ano?; costuma se atualizar como profissional?; costuma fazer cursos de especialização?; se interessa por arte e cultura?; quais seus assuntos prediletos?; procura se manter informado sobre acontecimentos e fatos no Brasil e no mundo?; que jornais e revistas costuma ler?”.
Quando soube que eu nunca havia assinado um jornal ou revista na vida, que não me interessava por cultura e que meu assunto predileto era futebór, a vendedora me passou uma senhora esfrega: “você não se interessa por cultura? Mas uma pessoa sem cultura não é ninguém hoje em dia”. E de quebra, tratou com ironia meu querido esporte bretão: “só falta você dizer que é corintiano”.
Meu cérebro (que ainda não havia saído de seu típico torpor matinal) demorou a captar o insulto. Minha atônita mudez parecia que ia durar indefinidamente. Foi então que a vendedora sentiu que o momento era propício para iniciar a doutrinação. Falou da importância da informação no mundo globalizado, das exigências de uma sociedade cada vez mais competitiva, da preparação para o mercado de trabalho, do investimento pessoal numa boa educação, do conhecimento que traz segurança ao falar em público, do sucesso pessoal, da sinergia de grupo, do espírito empreendedor, da iniciativa, da liderança, do sucesso financeiro, do cidadão globalizado – senhor de seu destino e livre do paternalismo do Estado.
Como havia acordado de bom humor, escutei tudo aquilo com paciência e curiosidade (a vendedora realmente demonstrava boa-fé em sua determinação de resgatar um brucutu do cativeiro da ignorância). Mas, quando ouvi a pergunta “com qual cartão de crédito o senhor trabalha?” (a vendedora era pior que a mulher-do-piolho!), desliguei o telefone.
Hoje confesso, envergonhado, que naquele momento senti uma certa pena da moça (vítima de tão feroz TPM ou, pior ainda, herdeira ideológica da maçarocada neoliberal que assolou o Brasil nos anos 90). Porém, quem era eu para sentir pena da moça? Ela, com seu discurso neoliberal-prafrentex, deve estar muito mais confortavelmente inserida na sociedade do que eu – eu que, desde a adolescência, já me identificava como protagonista do “Poema em Linha Reta” do Fernando Pessoa.