O Imperador Filósofo
“Para que serve um filósofo que não fere os sentimentos de ninguém?”
(Diógenes de Sinope, o cínico, 400-325 a.C.)
Platão nunca dissimulou sua descendência aristocrata, nem seu rancor contra a democracia ateniense. Não era para menos! Sua família (que aspirava ao poder oligárquico) viu com tristeza os anos de glória de Atenas degringolar em governo popular, e ele próprio viu Sócrates ser condenado à morte nas mãos dos democratas.
No entanto, o que mais incomodava Platão era o amadorismo inconseqüente dos líderes do povo, preocupados em adular multidões insanas e prontos a ceder às pressões do populacho. Para Platão, Atenas carecia de um líder responsável e capaz, detentor de virtudes, sabedor das verdades perenes, que tomasse sobre si a nau desgovernada do Estado e a conduzisse com mão firme, em consonância com a ciência sublime das formas puras e transcendentes (que só o estudo desinteressado da filosofia poderia oferecer). Em suma, um filósofo.
Platão até que tentou criar o seu governante filósofo. Em 367 a.C., aceitou o convite para ir a Siracusa com a missão de iniciar o tirano Dionisius II na ciência sublime das formas puras e transcendentes. Mas, o aprendizado logo desandou numa sucessão de arranca-rabos. Após anos de baldados esforços, perplexo diante da burrice irremediável do tirano (que preferia refutar argumentos com a ponta da espada), Platão abandonou o projeto e voltou a Atenas, amargurado e descrente dos homens.
O sonho de Platão se realizaria oito séculos após sua morte (com o cristianismo já comendo solto pela região mediterrânea). Em 497 d.C., um dos alunos amestrados pela Academia de Atenas, por uma dessas brenhas do destino, tornou-se líder de uma pequena região da Ilíria, na costa setentrional do mar Adriático, lugar onde ainda prevalecia um paganismo insubmisso ao domínio cristão. O jovem filósofo fez-se Imperador Theophylactus Trebonianus Gaius I com a promessa de erigir um império de extensão continental assentado sobre os ideais platônicos.
No seu primeiro ano de reinado, ainda fedendo a cueiro acadêmico e ansioso para pôr em prática seu cabedal de conhecimentos, Gaius I realizou um concurso público que trazia o cunho de suas preocupações filosóficas (e que tinha por fim iniciar o vulgacho inculto no sublime exercício da Lógica). A aptidão a ser avaliada era curiosa, e a recompensa de inestimável valor educativo. A pessoa que lhe trouxesse a informação mais inútil seria laureada com uma viagem a Atenas, e desfrutaria o privilégio de estudar na academia criada por Platão, sob os generosos auspícios do imperador.
Para a surpresa de Gaius I, a população se mostrou pródiga no fabrico de informações inúteis. Era tanta asneira pipocando de todos os lados que a improficuidade parecia ser o traço peculiar da cultura daquela região.
No dia da premiação, Gaius I reuniu o povo diante do palácio e abriu a sessão solene com um longo discurso em tom professoral. Discorreu sobre a filosofia neoplatônica e as inquietações metafísicas dos povos civilizados. Durante seu bolodório babelesco, muitos tiveram a impressão de que estavam diante do merecedor – incontestável – do prêmio. Quando o povaréu já não agüentava mais, o imperador deu início à questão principal. Explicou que havia criado o concurso a fim de exemplificar uns dos princípios basilares do pensamento neoplatônico: o da não-contradição. Princípio que, infelizmente, o impedia de conferir o prêmio ao vencedor, pois qualquer informação que fosse utilizada para se obter algo não poderia ser merecedora do predicado “inútil”.
Não teve tempo de descer a pormenores sobre o tal princípio. Um torrão de argila explodiu em seu cocuruto. Um garoto indignado (famoso na região por esmerar-se como incomparável artífice de inutilidades) foi quem arremessou o projétil. A ousadia inflamou o povo. Em poucos segundos uma montoeira de ensandecidos já infestava o pátio, e uma correria incontrolável se propagou palácio adentro. O massacre foi fugaz, e a apoteose se deu entre as colunas do pórtico com um popular ostentando a cabeça do imperador espetada numa estaca.
À noite, hordas de manifestantes saíram às ruas, consagraram-se à bebedeira e converteram-se ao cristianismo. O exercício da filosofia foi rigorosamente proibido em toda a região. Esses primeiros anos de tirocínio na fé cristã foram marcados por uma perseguição implacável aos filósofos. No entanto, ao entusiasmo inicial sucederam-se anos de razoável tolerância. Foi então que aquele garoto (que havia atirado o torrão de argila) tornou-se (por uma dessas brenhas do destino) o Imperador Bizantino Justino I que, em 529 d.C., fecharia em definitivo as escolas de filosofia de Atenas. Tiro de misericórdia contra um paganismo já encurralado e agonizante.